Comunidade assistindo a transmissão de Free Fire na primeira edição da Copa das Aldeias na Aldeia Bracui, no Rio de Janeiro
Arquivo pessoal
Comunidade assistindo a transmissão de Free Fire na primeira edição da Copa das Aldeias na Aldeia Bracui, no Rio de Janeiro

Um evento tem reunido famílias em frente a telas em comunidades indígenas de todo o Brasil. Parece final de campeonato de futebol, mas o jogo é outro: o Free Fire . 144 equipes de 28 etnias competem a segunda edição da Copa das Aldeias , que teve início no último domingo (10).

O campeonato conta apenas com participantes indígenas que enfrentam dificuldade de conexão à internet , baixo acesso à energia elétrica e a resistência dos mais velhos para conseguirem disputar no famoso jogo de celular. Dois deles são Flávia Xakriabá, de 23 anos do povo Xakriabá, de Minas Gerais, e Alexandro Kuaray, também de 23 anos da aldeia Yyakã Porã, de Ubatuba, litoral de São Paulo.

Flávia é apaixonada por games desde que se entende por gente, mas foi só depois dos 18 anos, quando teve seu primeiro celular, que começou a entrar de vez no universo dos jogos eletrônicos . A história de Alexandro é parecida: a falta de acesso à internet na aldeia que vivia anteriormente o fez começar a jogar um pouco mais tarde.

Flávia Xakriabá e Alexandro Kuaray participam da competição
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Flávia Xakriabá e Alexandro Kuaray participam da competição

Ambos já tinham participado de outros campeonatos de Free Fire , mas nenhum que reunisse tão bem a comunidade indígena. "Eu nunca tinha participado de um campeonato, nunca tinha visto uma competição só de indígenas. E isso, para mim, é incrível, porque eu estou conhecendo outros povos, outras etnias, tem etnia do Brasil inteiro, e tem muita gente, e a galera joga muito. Tem uma diversidade incrível dentro da Copa das Aldeias", comenta Flávia.

Parece final de campeonato

E a competição, que teve sua primeira edição em dezembro passado e promete ser mensal, realmente faz juz ao seu nome, já que os jogos da Copa das Aldeias movimentam as comunidades igual final de campeonato de futebol. Isso, porém, não aconteceu facilmente.

Alexandro conta que algumas pessoas da sua família e de sua aldeia não viam os jogos eletrônicos com bons olhos antes, mas o campeonato tem mudado essa visão. "Até minha irmã que criticava acompanhou [meu jogo] ontem. Minha família toda estava ligada no notebook, isso é uma ligação muito forte que está trazendo para nós", conta.

Não foi diferente na comunidade da Flávia, assim como nas de outras dezenas de meninos e meninas que participam da competição. Ela conta que o futebol era o único esporte que reunia a aldeia toda mas, com a chegada da pandemia e a impossibilidade do contato físico, os jogos eletrônicos ganharam espaço dentro das aldeias à medida que foram ganhando a confiaça do povo indígena.

"[No início,] a gente jogava e o pessoal da família reclamava. Depois que a gente explicou sobre a Copa das Aldeias, que tinha outros indígenas e que isso de alguma forma poderia beneficiar o povo, poderia trazer visibilidade para o povo, aí até a galera que criticava está começando a assistir. Porque, de uma forma ou de outra, isso traz um impacto positivo para a aldeia. As famílias se reúnem para ver a gente jogando, então isso é bacana", afirma a jovem.

Convencer os mais velhos de que o campeonato era positivo, porém, não foi difícil apenas para quem compete. Igor "Cai por Terra", jogador, narrador de Free Fire e organizador da Copa das Aldeias, diz que foi complicado quebrar a barreira da desconfiança dos mais velhos, sobretudo porque ele não é indígena.

"É um pouco complicado você convencer um ancião. 'Free Fire dentro da minha aldeia? Pelo amor de Deus, vocês vêm para matar minha cultura, vocês vêm para tirar o que a gente está preservando há mil anos'. A barreira para enfrentar isso foi grande no começo. Até eles me conhecerem, saberem do meu caráter, saberem quem eu sou. Agora, a gente está amigo. Muitos anciãos estão acreditando em mim, estão aceitando a ideia", comenta.

O campeonato surgiu de uma ideia do próprio Igor depois de ele ser convidado por um jogador indígena para narrar uma partida. "Como eu moro em comunidade, então toda a classe que é minoria, a gente abraça mesmo", diz. Ele, então, apresentou a ideia para a plataforma de streaming de jogos Nimo TV , que resolveu abraçar a novidade e dar força para o campeonato. "Quando a gente vê potencial, a gente quer que o negócio estoure mesmo",  afirma Rodrigo Russano Dias, gerente de maca e PR da Nimo TV.

Da primeira para a segunda edição, o campeonato triplicou em número de participantes - dentre os novos, estão Flávia e Alexandro. O objetivo é continuar crescendo e revelando talentos da comunidade indígena para o universo dos games. "Meu sonho é realizar os sonhos das pessoas através do game", diz Igor.

Conexão em meio à mata

Para jogar a Copa das Aldeias, muitos competidores andam quilômetros para conseguirem acesso à internet , conta Emy Yoshinho "Bruxinha", uma das organizadoras do evento, responsável pela seleção dos participantes. 

"O maior desafio de todos é a internet. Tem muita aldeia que é super longe. Esse semana mesmo, uma equipe não pôde jogar por conta da energia, e isso deixa a gente triste. Como eles falaram, eles se prepararam muito para estar ali", comenta.

Alexandro e Flávia explicam que a dificuldade é real. Na aldeia de Alexandro, por exemplo, a energia vem através de placas solares - se não tem Sol, não tem celular carregado e não tem campeonato de Free Fire . Já do lado da Flávia, a internet é instável - se chove, nada de jogo.

"A maioria das aldeias tem essa dificuldade de internet porque é de difícil acesso. A aldeia fica longe da cidade, a maioria fica mais para o meio da mata, e isso dificulta muito para a gente começar realmente a entrar nesse mundo gamer. E outro fator é falta de energia, essas coisas acabam dificultando. Aqui mesmo, na minha aldeia, a gente não tem energia elétrica, a gente usa três placas solares para poder carregar os nossos celulares. E aí a gente depende do Sol também, quando não tem Sol durante uns dois ou três dias, aí já não tem como carregar o celular, e isso dificulta demais esse mundo de games para nós", explica Alexandro.

As dificuldades, porém, nunca foram impeditivo para que os jovens continuem treinando. E, em meio às matas, talento nos games é o que não falta. Igor confessa que já presenciou, na Copa das Aldeias, muitas crianças de sete ou oito anos jogando melhor do que ele.

"Nas comunidades indígenas, nas aldeias, nos territórios, tem muito talento, tem gente que joga demais e poderia estar em uma dessas guildas [nome dados às equipes do jogo] grandes, poderia estar participando dos campeonatos, poderia estar junto com os grandes players. Acho que o que falta é um olhar mais sensível, uma busca pela gente, para os povos indígenas", opina Flávia.

O moderno conversando com a cultura milenar

"Para todos os players que estão nessa Copa, eu espero que um desses jovens tenha oportunidade de estar em uma guilda grande, ou que uma guilda de indígenas seja, também, grande", sonha Alexandro.

Ele lembra que, em meio às comunidades indígenas, os jovens tem dois olhares: um para dentro da cultura milenar da comunidade, e outro para o que é novo e moderno, como o universo dos games . As duas visões, porém, se conversam. "Entramos nessa vida de gamer, mas sem esquecer da nossa cultura".

Para jogar e ter o apoio da família, ele conta que conversou com os irmãos e sobrinhos para que eles separassem os horários de treino dos momentos de terem suas tarefas domésticas e ajudarem a comunidade. A experiência de Flávia é parecida.

"Como Alexandro bem destacou, o fato da gente estar no mundo dos games, estar com celular, estar no computador, isso não vai fazer da gente menos indígena. É importante a gente destacar isso: a gente joga, a gente brinca, a gente se diverte, mas a gente também tem os deveres da aldeia, a gente também não deixa morrer as tradições e a nossa cultura", diz ela.

Não é só mais um joguinho

A união que as comunidades indígenas têm experimentado com o campeonato de Free Fire pode ser definida por uma frase bastante utilizada pela fãs do game: não é só mais um joguinho. Na cabeça dos organizadores, a Copa das Aldeias é capaz de projetar jovens indígenas para o mundo dos games.

Mas, além disso, o campeonato também está sendo capaz de promover trocas culturais bastante interessantes. Com etnias dos quatro cantos do Brasil participando, os jovens conseguem conhecer variações culturais em uma experiência que tem sido bastante respeitosa e colaborativa, apesar da rivalidade natural da competição.

Até para quem está de fora das aldeias, o ganho cultural é muito grande. Emy conta, por exemplo, que começou a aprender sobre a cultura indígena participando da organização do evento. "Uma das coisas que me fisgou na Copa das Aldeias é porque eu tenho descendência [indígena] também por parte do meu pai, só que eu não tenho contato. Então quando eu entrei em contato, eu comecei a me apaixonar mesmo, comecei a querer descobrir mais sobre a minha família, sobre a minha descendência. E isso é muito legal, algo dentro da gente está mudando".

Para Flávia, um dos grandes ganhos da Copa das Aldeias é a visibilidade que o campeonato traz para o povo indígena. Ela, que é a primeira estudante de jornalismo do seu povo, diz que sua graduação na área nunca foi sequer sonhada pela comunidade, mas que ela tem representado sua etnia nesse sentido. No mundo dos games , a expectativa é que ocorra um movimento parecido. "A gente tem vários influencers que são indígenas também. Tem uma diversidade muito grande de indígenas na mídia, em vários espaços. Só no mundo gamer que ainda não tem, e eu espero que isso mude".

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