Pois bem, eu tinha que começar por algum lugar, esse artigo não ia se escrever sozinho. Que seja pela bunda, então.
Já estava ficando meio embaraçosa a minha demora e, inspirado por este título que me veio não sei de onde, tirei metaforicamente a bunda da cadeira, coloquei anatomicamente a bunda nesta poltrona e cá estamos, com toda a intimidade que essas quatro mal digitadas linhas nos permitem, falando de bundas.
Bundas, como espero demonstrar neste artigo introdutório, ops, inicial desta minha singela coluna, são o bundamento onde se assentam não só uma série de trocadilhos infames que me surgem na mente sem parar mas, também, a fonte da desconcertante bundância de boladas nas costas e pontapés nos glúteos de quem se mete, por ingenuidade ou falta de juízo, a fazer algo diferente.
Ingenuidade ou falta de juízo, talvez, expliquem porque cá estou colocando como sempre a bunda na janela num tempo em que tudo é vitrine e todos somos assessores de imprensa de nós mesmos embalados para presente enquanto mantemos a bunda cuidadosamente aderida à parede mais próxima, mas quem mandou decorar poemas em linha reta na adolescência enquanto todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo e eu me pergunto "e se eu me chamasse Raimundo?" mas, claro que, diante de bundas vastas bundas se eu me chamasse Raimunda seria rima e não solução.
Deixemos os poetas de lado. Voltemos ao começo, então. Voltemos à bunda.
Melhor: voltemos ainda mais no tempo, voltemos a um momento onde comuniquei a uma plateia meio incrédula uma versão ainda imatura da Grande Teoria da Bundância e, ao mesmo tempo, dei um dos maiores tiros no pé da minha sinuosa carreira.
Ninguém tinha ido àquele evento para me ouvir falar, aliás. O plano inicial era que eu fosse o mediador em um painel de três convidados que eu não conhecia e acabei não conhecendo porque, pasme, deram um W.O. triplo na véspera e deixaram a organizadora com as nádegas na mão.
— René, você topa palestrar sozinho? Pode falar o que você quiser.
Pobre alma. Ela não podia imaginar.
Eu topei e me empolguei. Ok, foi mais que isso, eu desbundei, e caso você tenha uma curiosidade maldosa de me ver falando alegremente o que nunca é dito, aqui está a íntegra para você se esbaldar e convido a sua imaginação a visualizar os olhares furibundos dos patrocinadores sentindo seus traseiros expostos sem aviso prévio.
Minha tese ainda embrionária comunicada naquele palco fatídico era simples: se eles quisessem saber onde se escondia o segredo do sucesso, o caminho para a inovação surpreendente, a chave de todos os mistérios… era só levantar a bunda da cadeira, pois todos estamos sempre sentados em cima dos verdadeiros problemas esperando que eles cansem de ser problemáticos enquanto nos distraímos com palestrantes glamourosos rebolando ideias mirabolantes que, mais cedo ou mais tarde, vão acabar se juntando ao buraco negro do “legado” sufocado sob o peso de bundas moles.
(Acho que fui mais elegante ou sutil do que isso, mas não me lembro bem e estou com vergonha de me assistir de novo, mas o espírito foi mais ou menos esse e, daí pra frente, as minhas chances de virar um guru de palco bem-remunerado por patrocinadores de bolso fundo em busca de carisma de aluguel se reduziram bastante. Em alguma lista meu nome deve ter um asterisco remetendo para uma nota de rodapé que alerta para o elevado risco de sincericídio.)
Eu me lembro da plateia ter se divertido, devo ter sido um sopro de ideias arejadas em mais um desfile de bullshitagem corporativa, mas algo me diz que minha injeção de transparência não vacinou ninguém, pois a tara de todo mundo é pelo que é sexy, pelo que promete a satisfação sem compromisso nem preliminares, por algo que injete nas veias ressequidas de uma empresa empoeirada, uma súbita mas passageira pujança pulsante e gloriosa que culmine em algo orgástico para por no gráfico da apresentação de fim de ano. Eventos de inovação são um tipo esquisito de porn patrocinado por várias modalidades de viagra imaginário.
Não estou insinuando, claro, que todas as empresas estejam caducas e claudicantes, potência não falta. O problema é que 95% da energia corporativa é investida meticulosa e calculadamente em versões engravatadas do Game of Thrones , e o tesão real parece ser não por algo palpável ou apalpável, mas sim pela cadeira X no escritório Y no andar Z e ai da bunda que se meter no meio do caminho. Tudo se resume a sentar no lugar certo ou ser sentado onde não é bom.
Daí vem o alívio do povo da firma quando vai a algum evento sexy ver ideias siliconadas rebolando entre um powerpoint botocado e outro: as bundas tão sofridas podem finalmente se sentar em cadeiras fresquinhas e não em montanhas de problemas espinhosos, podem escolher qualquer assento sem se preocupar com facadas nas costas ou outras ameaças à sua integridade posterior.
Ninguém vai a evento para se inspirar, vai simplesmente para conseguir respirar, e respirar com os glúteos relaxados. Quem foi esperando algo diferente e voltou achando que ia redirecionar o torvelinho de energias desperdiçadas para, finalmente, iluminar o purgatório dos problemas órfãos, esse vai terminar com cara de bunda.
Seja bem-vindo a este novo espaço, puxe uma cadeira, abunde-se. Aqui os bons temas abundam.