Qual é o transtorno mental de Senua em Hellblade?
Durval Ramos
Qual é o transtorno mental de Senua em Hellblade?

Senua’s Saga: Hellblade 2 é um dos jogos mais aguardados do Xbox Series X/S não apenas pela promessa de ser um dos grandes exclusivos do console da Microsoft , mas pela própria natureza da franquia. O jogo da Ninja Theory dá sequência a um dos títulos mais interessantes dos últimos anos, uma série que surgiu sem fazer muito alarde e com uma protagonista bastante única.

O primeiro Hellblade: Senua’s Sacrifice chamou a atenção na época de seu lançamento, em 2017, ao trazer uma protagonista neurodivergente. Toda a jornada da protagonista ao inferno nórdico para recuperar a alma de seu marido morto por uma invasão viking recriava uma experiência de psicose , algo que diferencia o game de tudo o que tínhamos visto até então.

Já na época, a Ninja Theory destacou o cuidado com que trabalhou o tema. Ao trabalhar com neurocientistas, psiquiatras e pessoas que sofriam com essa condição, o estúdio trouxe um jogo que mesclava muito bem elementos de fantasia com elementos clínicos de forma bastante respeitosa e impactante. Por isso mesmo, a curiosidade para ver como isso vai ser lavado para Hellblade 2 é mais do que justificável.

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Contudo, a aproximação do lançamento também reacende a curiosidade sobre a condição da heroína Senua. Enquanto sua forma única de ver o mundo é bastante evidente, muito se questiona sobre o transtorno que a protagonista de Senua’s Saga: Hellblade 2 encara.

Como a neurodivergência de Senua aparece em Hellblade

Ao longo de Hellblade: Senua’s Sacrifice , a Ninja Theory não menciona exatamente qual é o transtorno específico de Senua. Também pudera, já que a história se passa em pleno século 8, em uma época em que saúde mental não era nem perto de ser uma questão discutida — embora fosse bastante presente no cotidiano dos povos.

Tanto que o passado trágico da personagem deixa isso bem claro. É revelado ao longo do primeiro jogo que Senua e sua mãe enxergavam coisas que os outros não viam e que, por isso, eram vistas pela sociedade picta da qual faziam parte como pessoas tocadas pela escuridão e responsáveis por tudo de ruim que acontecia com o povoado. Por conta disso, a mãe da personagem é sacrificada pelo próprio marido, que buscava expurgar o mal do lugar.

Só que, enquanto o jogo em si não diz abertamente, o estúdio usou o jogo para levantar a bandeira sobre a discussão de saúde mental, neurodivergência e acessibilidade, dando visibilidade ao assunto e mostrando que não se trata de um tema tabu. Afinal, isolar e sacrificar quem é diferente é algo que precisa ficar apenas no século 8 e não hoje em dia.

A psicose de Senua

Só que nem mesmo a Ninja Theory diz de forma clara qual é o transtorno exato de Senua. Desde o lançamento de Senua’s Sacrifice até a divulgação do novo Senua’s Saga: Hellblade 2 , o estúdio tem se limitado a descrever a personagem como alguém que sofre com quadros de psicose, mas sem apontar para um ou outro diagnóstico mais preciso.

O chefe da Ninja Theory, Dom Matthew, chega a ser ainda mais vago. Para ele, a heroína é alguém que encara um estado alterado de realidade, “enxergando o mundo de forma única e existindo em uma realidade invisível para outros”.

Só que, como explica o psiquiatra e professor de Neurociência da Universidade de Cambridge Paul Fletcher, a psicose não é um diagnóstico, mas um quadro que pode estar associado a diferentes tipos de condições médicas e psiquiátricas — e que pode ser despertado por diferentes fatores.

Fletcher é consultor da Ninja Theory e um dos principais especialistas na construção do universo de Hellblade e no modo como o game traduz a condição da protagonista em gameplay . “A pessoa com psicose pode sofrer mudanças em suas percepções e crenças”, explica. “Eles podem ver e ouvir coisas que outras pessoas não conseguem e podem vir a acreditar em coisas que são bastante atípicas para eles. Por exemplo, podem sentir que alguém muito próximo a eles esteja tentando machucá-las”.

Fletcher destaca que, para a pessoa com psicose, essas percepções são tão intensas e palpáveis que realmente se tornam realidade. Uma realidade alternativa, mas bastante crível para quem está dentro daquele mundo.

Por causa disso, o diagnóstico mais comum que todo aponta em um primeiro momento é que a personagem de Hellblade convive com a esquizofrenia , condição que tem como principal característica as alucinações e os delírios — elementos que estão bem presentes no jogo. Toda a jornada de Senua no primeiro jogo ao Hel para trazer a alma do marido de volta pode ser encarada como algo nesse sentido.

Só que, como Fletcher destaca, a psicose pode estar atrelada a outros quadros. Tanto que, desde o lançamento do primeiro Hellblade , diversas análises sobre o jogo e a representação de transtornos psiquiátricos foram feitas e apontaram para possíveis diagnósticos da personagem, incluindo à lista também depressão, transtorno esquizoafetivo, entre outros.

Só que, no fim das contas, a resposta já está presente no game e de forma bem mais simples e, ao mesmo tempo, complexa.

Quebrando a protagonista

Enquanto cientista, Paul Fletcher pesquisa principalmente o modo como o cérebro dá sentido ao mundo, fazendo conexões e previsões do mundo objetivo à nossa volta com as crenças e conhecimentos que cada indivíduo já carrega dentro de si. É a partir desse equilíbrio que, segundo ele, a gente constrói a nossa realidade. Mas o que acontece quando essa organização se desfaz?

“A psicose é essa experiência de construção interna alterada da realidade de uma pessoa”, explica o psiquiatra e pesquisador. Segundo ele, quando esse tensionamento é levado a um extremo, o indivíduo passa a construir uma realidade totalmente diferente daquela do mundo ao seu redor. E é aí que a psicose se manifesta.

E o que pode causar essa mudança? Para o cientista, são várias as razões que podem servir de gatilho, de doenças e distúrbios neuroquímicos até coisas, em tese, mais simples, como estresse e privação de sono.

“Também acontece que nossa experiência muda a forma como prevemos as coisas. Então, uma experiência muito profunda, por exemplo, de trauma poderia mudar poderosamente a maneira como fazemos previsões sobre o mundo e nos deslocar desse delicado equilíbrio para um estado de psicose”.

E é aí que as coisas parecem fazer sentido para a protagonista de Senua’s Saga: Hellblade 2 . Como dito, o primeiro jogo é uma jornada bastante pesada da personagem a partir de uma sequência de traumas. O game começa com ela vendo sua vila ser atacada por vikings e seguindo com a cabeça morta do seu marido em direção ao inferno. As coisas claramente não são leves e, à medida que aprendemos mais sobre seu passado, tudo fica ainda pior.

Como consultor da Ninja Theory, Fletcher relembra que o jogo deixa claro também que Senua era alguém com predisposição para esse tipo de condição, já que era capaz de ver e ouvir coisas desde cedo.

Então, a grande sequência de tragédias que se sucederam parecem ter despertado quebrado a personagem. “É possível que todos esses traumas agiram de acordo com suas tendências naturais para derrubá-la nessa experiência psicótica que é retratada em Hellblade ”.

Por isso mesmo, identificar qual é a doença ou transtorno específico da personagem parece ser o que menos importa no game. O velho adágio de que a jornada é mais interessante do que o destino se prova verdadeiro aqui, pois o diagnóstico é completamente irrelevante frente ao trabalho da Ninja Theory de traduzir em imagens e mecânicas uma condição tão específica.

Não por acaso, primeiro Hellblade se tornou um jogo muito celebrado e sua sequência um dos jogos mais aguardados de 2024. Prova de que visibilidade e representatividade apenas enriquecem boas histórias.

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