“Eu não faço a menor ideia”. Em meio a risadas, é assim que Mariéme Jamme tenta responder quem ela é. Ganhadora de diversos títulos, conhecida globalmente e dona de um plano para salvar o mundo - melhor do que o de qualquer super-herói - que inclui jovens mulheres na tecnologia, a empresária senegalesa diz que ouve muitas descrições sobre quem é, mas, na verdade, é incapaz de responder a essa pergunta.
“Quem sabe um dia eu descubro”, brinca a programadora em entrevista ao iG durante a She’s Tech Conference , em Belo Horizonte, no último sábado (23).
Mariéme nasceu no Senegal e foi abandonada pela mãe logo cedo. Depois de pular de orfanato em orfanato na zona rural do país, foi traficada para Paris aos 13 anos, onde viveu nas ruas e foi explorada sexualmente.
Aos 16, foi resgatada pela polícia francesa e levada para um centro de refugiados. Foi só nessa idade que Mariéme aprendeu a ler. Sozinha.
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Foi também sozinha que a jovem aprendeu a programar em sete linguagens diferentes , entre elas C++ e Python.
E foi isso que mudou a sua vida. Hoje, aos 45 anos, Mariéme tem o sonho de mudar a vida de um milhão de meninas até 2030 por meio da mesma programação que mudou a sua vida .
“Eu queria que, quando eu estivesse crescendo, existisse uma Mariéme Jamme na minha vida. Eu não teria tido tanto medo, eu não seria tão traumatizada, e eu seria mais confiante. Este é o motivo pelo qual, hoje, eu estou tentando criar essa Mariéme Jamme, para que as pessoas saibam que eu estou aqui. E eu acho que o mundo precisa disso ”, afirma.
Do abandono ao sucesso
Depois de aprender sozinha a programar, a vida de Mariéme começou a mudar. Ainda jovem, ela se mudou para Londres, onde iniciou sua carreira em bancos. Mais tarde, ingressou em empresas de tecnologia e, depois, fundou sua própria companhia.
Britânica, francesa e senegalesa, Mariéme hoje não é conhecida apenas por seu sucesso profissional . O trabalho social realizado pela empreendedora é o que faz com que seu nome seja citado em quase todas as conversas sobre mulheres em tecnologia.
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Tecnologia, na verdade, é o que Mariéme sonha em levar ao maior número possível de mulheres. Para ela, aprender a programar pode ser uma forma de mudar a vida dessas jovens meninas , inserindo-as no mercado de trabalho de forma mais competitiva.
iamtheCODE
Foi pensando nisso que Mariéme criou o iamtheCODE (em português, “eu sou o código”), um movimento que que visa mobilizar governos, empresas e investidores para apoiar a educação de jovens mulheres no setor conhecido como STEAMED , sigla em inglês para Ciência, Tecnologia, Engenharia, Arte, Matemática, Empreendedorismo e Design.
O principal foco do movimento, que hoje é mantido em boa parte pelos lucros da empresa de software fundada por Mariéme, é formar um milhão de meninas programadoras até 2030.
Você viu?
“Eu queria criar algo que não apenas ensinasse um milhão de garotas a programar, mas também que dissesse a cada menina que eu conheço: você tem o código para mudar a sua vida. Se você for consistente no seu trabalho duro , e tiver compaixão e empatia, se amar e amar aos outros, você consegue. iamtheCODE é sobre duas coisas: inspiração e tecnologia”, define Mariéme.
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Se formar um milhão de meninas marginalizadas parece muito, a senegalesa afirma que “na verdade, não é um grande desafio”.
Ela conta que, com uma metodologia simples, o movimento vai espalhando cursos por todo o mundo. Em 12 semanas, as meninas saem formadas e capazes de construir um website ou um aplicativo .
E, embora lidere o projeto, Mariéme não gosta de levar todo o crédito por ele. “Se temos mil meninas programando no Brasil, isso é mérito do Brasil. Se temos mil meninas programando no Quênia, isso é mérito do Quênia. Não é meu mérito, eu sou só a mensageira aqui. É um esforço coletivo”, afirma.
Brasileiras precisam inventar mais
Mariéme Jamme já visitou o Brasil algumas vezes e agora trouxe o iamtheCODE para cá. O kit básico desenvolvido pelo movimento, que ensina meninas a programarem em cinco minutos, já se espalhou por algumas cidades do País.
Em sua recente visita a Belo Horizonte, a líder do projeto disse que será iniciada uma nova turma na cidade no início do próximo ano.
“Minha maior expectativa para o Brasil é que mais meninas aprendam a programar devidamente e consigam empregos no setor de tecnologia. E desejo que as meninas do Brasil façam parte do iamtheCODE, quero que o Brasil faça parte dos nossos números”, revela Mariéme.
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Para a empreendedora, que diz observar desafios para mulheres em tecnologia nos quatro cantos do planeta, o cenário brasileiro tem alguns desafios particulares .
“Eu acho que todas as mulheres que eu conheço querem a mesma coisa: serem bem-sucedidas e resolverem um problema. Mas eu acho que precisamos ser mais estratégicas e mais práticas naquilo que queremos atingir para o ecossistema. Assim, conseguimos fazer dinheiro e construir inovação”, opina.
Segundo o olhar de Mariéme, existe uma quantidade razoável de mulheres no setor de tecnologia, e isso melhorou ao longo dos últimos anos.
Essas mulheres, porém, não são as responsáveis por realmente criarem soluções novas. “Eu acho que se conseguirmos mudar o Brasil da idealização para a criação e a invenção, isso será incrível. Eu acredito que é isso o que as mulheres brasileiras precisam, de mais invenções”, afirma.
De onde a mudança virá
Mariéme reconhece que o ecossistema de mulheres em tecnologia no Brasil é forte, sobretudo com a ascensão de diversos grupos que se dedicam a levar o movimento adiante.
E é justamente desse ecossistema que ela acredita que virá essa virada do acreditar para o fazer.
“Isso virá de vocês, virá das mulheres e das comunidades”, acredita a senegalesa. “Se você me disser que é uma mulher em tecnologia, eu quero saber o que você inventou, criou e construiu. (Quero saber se) você realmente é uma mulher em tecnologia”, indaga a profissional.