A decisão do Federal Communications Commission (FCC), órgão responsável por regular o setor de telecomunicações nos Estados Unidos, de derrubar a neutralidade de rede gerou diversas críticas de internautas e empresas. Em votação apertada, os cinco membros da comissão aprovaram o fim da obrigação estabelecida para as operadoras em 2015 durante o mandato de Barack Obama
A neutralidade de rede é um conceito que obriga as operadoras a tratarem da mesma forma todos os dados que trafegam pela internet. Com ela, os sites devem ter a mesma preferência para realizar o envio de um e-mail ou para reproduzir um vídeo. Ao permitir que as empresas que oferecem serviços de banda larga não sejam neutras no tratamento de dados, determinados poderão ser mais rápidos que outros.
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Em sua decisão oficial, o FCC retirou a classificação da internet banda larga como um serviço de utilidade pública, que impedia a diferenciação das informações que trafegam na rede. Para André Miceli, coordenador do MBA em Marketing Digital da Fundação Getulio Vargas, o fim da neutralidade de rede é ruim para os consumidores que, possivelmente, terão que optar por tipos de dados que mais consomem.
Segundo Miceli, os usuários de banda larga poderão receber o "conteúdo de um provedor que vai ter vendido prioridade de distribuição e vai ter que se submeter ao consumo que essa configuração permite que ele tenha". Caso uma empresa decida ter prioridade em todas as operadoras, os consumidores serão praticamente obrigados a contratá-la se esperam um serviço de qualidade.
"A rede era neutra. Agora eu posso pagar para ter um espaço maior, ter prioridade em relação ao envio de pacotes. A Netflix pode dizer: 'meu conteúdo vai primeiro, pago para meu conteúdo ir primeiro'". As opções deverão ser ainda mais escassas para consumidores de cidades pequenas, onde poucas empresas costumam atuar. Em um cenário extremo, os internautas passarão a se informar somente pela visão de mundo de um determinado site.
De acordo com o professor, se o fim da neutralidade de rede tem alguma vantagem, essa é a clareza para usuários. Segundo ele, caso haja uma competição de verdade e as empresas derem notoriedade sobre o que será priorizado, os consumidores podem tomar melhores decisões. "Você vai poder contratar um provedor que dá prioridade para o tipo de conteúdo que você gosta de consumir", explica.
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No entanto, Miceli afirma que, "de uma maneira geral, [a medida] tem muito mais perdas que ganhos". Logo após o FCC decidir pelo fim da neutralidade , usuários compartilharam imagens de tabelas de preços da internet em países em que a medida já foi derrubada. Em Portugal, por exemplo, a operadora MEO oferece pacotes de mensagens, redes sociais, vídeo, música, e-mail e nuvem para internet móvel. Cada um deles custa 4,99 euros (cerca de R$ 19) mensais.
As principais beneficiadas, para Miceli, são as operadoras, que terão a chance de aumentar seus lucros ao dividir o consumo de seus clientes por tipos de serviços. Para ele, os usuários brasileiros de internet seriam fortemente prejudicados caso uma proposta semelhante seja aprovada. "A gente não tem opções suficientes para que esse cenário crie alternativas que tornem isso um bom negócio", afirma.
O fim da neutralidade de rede pode atingir o Brasil?
A neutralidade de rede só poderá ser anulada no Brasil caso haja uma alteração no Marco Civil da Internet , previsto na Lei 12.965, de abril de 2014. O texto dispõe de uma série de direitos dos usuários de banda larga e determina que o uso de rede no Brasil deve preservar e garantir a neutralidade de rede. "O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados", diz a Lei.
Como lembra Miceli, atualmente, é possível "competir com qualquer portal em igualdade de condições". A neutralidade de rede, segundo ele, contribui para um ambiente de inovação e favorece os pequenos proprietários de sites e outros serviços na internet. Quando a exigência de tratamento igualitário é derrubada, os donos desses projetos são os principais prejudicados. "A democracia [na internet] era caracterizada pela igualdade de condições", afirma.
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A decisão do FCC de derrubar a neutralidade de rede parece ter mobilizado as operadoras de internet banda larga no Brasil. Em nota divulgada depois da votação do FCC, o Sindicato Nacional de Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal (Sinditelebrasil) defendeu a flexibilização das atuais regras brasileiras para garantir o que definiu como "neutralidade inteligente".
"O setor de telecomunicações é a favor da neutralidade aplicada de forma inteligente, permitindo às empresas gerenciar o tráfego nas suas redes com o objetivo de melhorar a qualidade e a experiência do usuário. Não deveria haver regra para interferir na gestão do tráfego das prestadoras de telecomunicações. Bastaria a lei reforçar que é assegurado aos interessados que o uso das redes se dê de forma não discriminatória, garantida pela fiscalização da agência reguladora", propõe a entidade.
Procurado pelo Brasil Econômico, o Sinditelebrasil afirmou que não está comentando a decisão do FCC. "As operadoras estão em uma posição que é confortável. Ela vai ter o direito de vender [prioridade] mesmo que ela se posicione com esse formato de neutralidade inteligente", opina Miceli, ao destacar o argumento do sindicato de que a flexibilização ajudaria a melhorar a experiência dos usuários.
"Ele [Sinditelebrasil] diz que vai dar prioridade ao conteúdo que o usuário consome. Ele se posiciona em relação ao Marco Civil falando sobre responsabilidade de transmissão", diz o professor. Para ele, "quebrar a neutralidade em um país com condições tão desiguais como as do brasil é extremamente perigoso. Viveremos um impacto no tráfego".
Semelhanças com as franquias de dados?
O posicionamento das empresas que prestam serviços de internet em relação à neutralidade de rede se assemelha ao que foi visto por consumidores no início de 2016, quando algumas operadoras defenderam a aplicação de uma franquia de dados nos planos. Na ocasião, o presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), comparou a cobrança de internet com a conta de luz para apoiar a imposição de limites de uso.
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Quando questionado sobre a relação entre o fim da neutralidade de rede nos Estados Unidos e a eventual inclusão de uma franquia de dados no Brasil, Miceli afirma que o antigo debate era ruim, mas não afetava a concorrência na internet. "Honestamente, essa primeira discussão me incomodava bem menos. Ter um limite não fere o cenário competitivo. Vai ser pior pra consumir, mas estão competindo em condições de igualdade", afirma.