"Idiotas pra car***o". Foi assim que Mark Zuckerberg definiu os primeiros usuários do Facebook, ainda em 2004, quando eles aceitaram ceder todos os seus dados para a rede social. "Não sei por quê; eles confiam em mim", disse ele em uma troca de mensagens com um amigo na época.
O trecho, revelado por uma reportagem do Business Insider de 2010, aparece no livro "Uma verdade incômoda: Os bastidores do Facebook e sua batalha pela hegemonia", escrito pelas jornalistas norte-americanas Sheera Frenkel e Cecilia Kan, que fazem a cobertura de tecnologia no jornal The New York Times. Junto dele, a obra também mostra diversos outros trechos de materiais jornalísticos levantados por elas e entrevistas com fontes ligadas à maior empresa de mídia social do mundo.
O livro abre a caixa-preta do Facebook desde sua fundação até os dias de hoje, revelando as reações do alto escalão da companhia às maiores polêmicas enfrentadas nos últimos anos, desde o genocídio em Mianmar - causado sobretudo pelo discurso de ódio que circulava na rede social que é sinônimo da internet no país - e a manipulação russa nas eleições estadunidenses de 2016 até o escândalo Cambridge Analytica, que expôs dados pessoais de mais de 87 milhões de usuários da plataforma.
Com uma narrativa envolvente e cheia de detalhes muito bem apurados, o livro deixa o leitor se sentindo exatamente como Zuckerberg havia descrito o usuário da rede no início de tudo, há 17 anos: como um completo idiota.
A apuração de Sheera Frenkel e Cecilia Kan mostra como as decisões do Facebook foram tomadas ao longo dos anos. Em alguns momentos da narrativa, a rede social é descrita como um enorme experimento.
Isso porque as grandes decisões do Facebook, que afetam bilhões de pessoas em todo o mundo, foram tomadas conforme as coisas iam acontecendo. Desinformação, discurso de ódio e vício em plataformas tecnológicas, de acordo com as autoras, foram temas tratados ao longo dos anos pelo Facebook de maneira irresponsável, sempre alegando que tudo não passava de um caso isolado.
Em diversos momentos do livro, fica claro que os executivos da maior rede social do mundo tinham clareza dos males que ela poderia causar, mas não se antecipavam a eles: problemas seriam resolvidos quando se tornassem enormes e, na maioria dos casos, apenas quando impactassem a opinião pública.
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Bilhões de pessoas podem ser - e foram - manipuladas por uma equipe que coordena um algoritmo que só visa lucro e crescimento. Como a narrativa se encerra no início de 2021, o livro não aborda os escândalos mais recentes da empresa , os chamados Facebook Papers, documentos vazados que revelam como a companhia manipula os usuários para favorecer seu capital.
Uma verdade incômoda, porém, prevê acertadamente que coisas piores ainda poderiam acontecer após a extensa apuração relatada. "Quando você estiver lendo este livro, o Facebook talvez seja bem diferente. [...] Ainda que os órgãos reguladores, ou mesmo o próprio Zuckerberg, decidam um dia encerrar o experimento do Facebook, a tecnologia que eles trouxeram até nós veio para ficar. [...] O algoritmo que funciona como o coração do Facebook é poderoso e lucrativo demais", escreveram as jornalistas.
E uma das reflexões mais fortes que o livro deixa é: até onde essa manipulação pode chegar? Sim, a tecnologia que o Facebook trouxe veio para ficar. E ela tende a avançar cada vez mais.
Depois que o livro foi publicado, a empresa já mudou seu nome para Meta
, em um anúncio no qual deixou claro que pretende investir pesado no metaverso
, uma espécie de universo digital que vai conseguir captar ainda mais dados dos usuários e usá-los das mais diversas formas.
Como declarou Zuckerberg em 2004, é difícil saber por que as pessoas confiam no Facebook, mesmo após a empresa dar tantas evidências de que essa não é uma escolha acertada.
Em certa altura do texto, um memorando de 2016 escrito por Andrew Bosworth, conhecido como Boz, um dos executivos mais importantes do Facebook e atual vice-presidente de realidade virtual e aumentada da Meta, revela bastante sobre a visão hegemônica da empresa, a forma irresponsável como ela lida com problemas e sua visão distorcida sobre bem e mal: "Talvez alguém morra em um ataque terrorista coordenado por meio de nossas ferramentas. Mas, ainda assim, seguimos conectando pessoas. A verdade incômoda é que acreditamos em conectar as pessoas tão profundamente que qualquer coisa que nos permita conectar mais pessoas com mais frequência é, de fato, boa".