Apesar do acesso de crianças menores de 13 anos às redes sociais ser proibido pelos próprios termos de uso das principais plataformas digitais, um número expressivo de crianças utilizam esses serviços.
No Brasil, 50% das crianças de 9 a 10 anos dizem utilizar o TikTok, assim como 55% das que têm entre 11 e 12 anos, de acordo com a pesquisa 'TIC Kids Online Brasil 2023' , do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). No caso do Instagram, as taxas são de 26% e 52%, respectivamente.
Mesmo entre crianças mais novas, a questão persiste. Segundo a pesquisa 'Panorama: Crianças e Adolescentes com Smartphones no Brasil', do Mobile Time e Opinion Box, as taxa de acesso são as seguintes:
- 0 a 3 anos: 15% acessam o TikTok e 6% acessam o Instagram
- 4 a 6 anos: 14% acessam o TikTok e 7% acessam o Instagram
- 7 a 9 anos: 33% acessam o TikTok e 15% acessam o Instagram
Utilizando um parâmetro estadunidense, as plataformas digitais proíbem o uso por menores de 13 anos para não terem que seguir uma série de exigências impostas para serviços digitais que têm esse público como alvo.
Apesar da proibição, os dados das pesquisas deixam claro que as plataformas ainda não fazem o suficiente para proibir, de fato, o acesso de menores de 13 anos.
No caso do TikTok, a empresa afirma que adota um sistema que exige que todo novo usuário informe uma data de nascimento. Se essa data resultar em uma idade inferior a 13 anos, a conta não é criada e aquele dispositivo fica impedido de ser usado para criar um novo perfil com outra data.
Além disso, a empresa diz usar "tecnologia e moderação humana" para identificar comportamentos dos usuários que revelem que eles têm menos de 13 anos. Quando isso acontece, as contas identificadas são excluídas.
A tática usada pela Meta no Instagram e no Facebook é bastante similar, usando ferramentas para identificar e remover contas de crianças. "A inteligência artificial é um dos pilares da abordagem que estamos adotando. Desenvolvemos uma tecnologia que nos permite estimar a idade das pessoas, identificando, por exemplo, se a pessoa tem menos ou mais de 18 anos. Treinamos a tecnologia usando múltiplos sinais, observando interações como desejos de um feliz aniversário e a idade escrita nessas mensagens, por exemplo", afirma a empresa.
"O parâmetro de 13 anos é absolutamente irreal, no sentido de que essa vedação de participação de pessoas com menos de 13 anos não corresponde à realidade", afirma Maria Mello, coordenadora do programa Criança e Consumo do Instituto Alana. "A gente tem um problema bastante grave que é o fato das plataformas não assumirem essa presença, não tomarem as medidas necessárias de proteção e de salvaguardas em relação aos direitos dessas pessoas", completa.
Crianças desprotegidas na internet
Maria afirma que, ao não admitir que existem crianças usando seus serviços, as plataformas digitais deixam de criar proteções específicas para essa faixa etária, colocando os mais novos em risco.
Para adolescentes entre 13 e 18 anos, as plataformas oferecem algumas medidas de proteção, como ferramentas de controle parental, restrições de mensagens diretas de estranhos e limites de horários para notificações. Na visão de especialistas, porém, as medidas são insuficientes.
"A gente pode focalizar essas questões, sim, nas crianças e adolescentes de até 13 anos, mas eu expandiria os riscos. Eu diria que os riscos talvez sejam exacerbados para pessoas com menos de 13 anos, mas eles não se restringem a essas pessoas", avalia Marina Meira, pesquisadora da Data Privacy Brasil.
De acordo com estudiosos sobre o tema, existem vários riscos relacionados ao uso de redes sociais por crianças e adolescentes. Alguns deles são próprios da internet como um todo, como o cyberbullying e a possibilidade de encontrarem adultos mal intencionados ou terem contato com conteúdos impróprios para a idade.
Além desses, porém, existem riscos relacionados diretamente ao funcionamento das redes sociais e aos seus modelos de negócios baseados na exploração de dados pessoais.
O modelo de negócio das redes sociais se baseia na capacidade de vender para anunciantes publicidade segmentada, que vai atingir exatamente o público-alvo de determinado produto ou serviço. Para isso, as plataformas coletam informações pessoais dos usuários a fim de entender suas preferências para, então, acertar nos anúncios.
Para coletar mais dados pessoais, as redes sociais precisam que as pessoas passem o maior tempo possível conectadas às plataformas - e, consequentemente, fornecendo informações. Para manter a atenção, então, as plataformas recomendam conteúdo que têm relação com o gosto dos usuários.
"O centro desse modelo de negócio é a exploração comercial dos dados de todos os indivíduos. E quando a gente pensa em crianças, especialmente crianças mais jovens, com menos de 13 anos, são pessoas muito mais suscetíveis a pressões consumistas. São pessoas que estão em fases de desenvolvimento, que ainda não desenvolveram toda maturidade para lidar com essas pressões consumistas. Então, se a publicidade direcionada já coloca muita pressão nos usuários como um todo, nas crianças e adolescentes ela coloca ainda mais pressão", analisa Marina.
"Esse modelo também vai direcionar para o usuário o conteúdo que o algoritmo traçou que interessa àquele usuário. Mas crianças e adolescentes estão em processo de formação, elas precisam ter um espaço para errar, para desenvolver sua personalidade, para entender os seus gostos, os seus interesses. Hoje, em grande medida, quem está determinando isso são essas plataformas", completa.
Além desses riscos, as plataformas digitais também exercem forte impacto sobre a saúde mental de crianças e adolescentes. No mês passado, ao menos 33 estados dos Estados Unidos abriram um processo contra o Instagram por viciarem os jovens na plataforma. Segundo a ação, o uso da rede social está associado a "depressão, ansiedade, insônia, interferência na educação e na vida diária e muitos outros resultados negativos".
As acusações vieram após a Meta passar por uma crise em 2021, quando diversos documentos internos da empresa foram vazados pela ex-funcionária Frances Haugen, no episódio que ficou conhecido como Facebook Papers .
Um dos documentos apontava que a empresa sabia dos efeitos negativos do Instagram para a saúde mental de adolescentes . "Tornamos os problemas de imagem corporal piores para 1 em cada 3 meninas adolescentes", dizia um dos trechos do documento.
Para as especialistas, esses riscos existem justamente porque as plataformas são desenhadas para serem viciantes e garantir a atenção dos usuários. "Existe todo um debate que a gente faz sobre o chamado direito por design. A arquitetura das plataformas precisa ser desenhada de forma a garantir os direitos das crianças. A gente pode falar de reprodução automática, por exemplo. Você termina de ver um vídeo, já entra outro, e aquela atenção fica retida ali por muito tempo. Isso é uma questão que pode ser mitigada a partir da aplicação de direitos por design", explica Maria.
O que as redes sociais deveriam fazer?
Na visão de Maria e Marina, é dever das próprias plataformas digitais proteger as crianças online, e o primeiro passo para isso seria admitir que crianças menores de 13 anos utilizam as plataformas para, então, criar mecanismos para que elas possam navegar com segurança.
"No mundo ideal, as plataformas não deveriam usar dados pessoais de qualquer pessoa com menos de 18 anos para direcionamento de publicidade", afirma Marina. No Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) afirma, em seu artigo 14, que "o tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes deverá ser realizado em seu melhor interesse".
"Não me parece que esses riscos das redes sociais estão de acordo com o melhor interesse das crianças e dos adolescentes", afirma Marina, sugerindo a ilegalidade do tratamento de dados de menores de 18 anos para fins publicitários.
Além dessa medida, as especialistas afirmam que algumas características que faltam nas redes sociais são:
- Transparência a respeito do seu funcionamento;
- Realização e publicação de avaliações de impacto do uso das plataformas por menores;
- Medidas claras contra o vício;
- Ter termos de uso mais explicados (como em vídeo, por exemplo), e garantir que as ferramentas de controle parental sejam acessíveis a todos os tipos de famílias.
"Na minha avaliação, proativamente as empresas têm feito muito pouco. Elas têm sido pressionadas pela sociedade civil e por autoridades reguladoras de todo o mundo, especialmente do Norte Global - da Europa dos Estados Unidos -, e isso tem levado elas a fazerem algumas adequações nos seus ambientes, nos seus produtos, mas entendo que ainda é um caminho bastante longo a ser percorrido para poder dizer que elas são efetivamente protetivas", avalia Marina.
"A Constituição Federal do Brasil diz que a proteção e promoção de crianças e adolescentes é prioridade absoluta e é responsabilidade compartilhada entre família, Estado e toda a sociedade, o que envolve também as empresas", completa.
Para as especialistas, é muito comum que a discussão sobre os riscos das redes sociais para crianças e adolescentes acabe sendo concluída com a ideia de que pais, mães e responsáveis precisam evitar que os jovens utilizem as plataformas.
"A gente não pode fazer uma leitura desse cenário e de saídas que resvale na exclusão das pessoas desse espaço. A internet é um espaço que pode ser explorador ou provedor de muito benefícios para o desenvolvimento das crianças, mas precisamos fazer um debate sobre responsabilização de plataformas", afirma Maria.
"Hoje, muito da nossa vida acontece na internet, então querer tirar as crianças e adolescentes da internet, eu entendo que é algo muito complicado. É algo que seria muito prejudicial, estaria ceifando direitos e muitas possibilidades de crianças e adolescentes", concorda Marina. "Eu entendo que a lógica tem que ser inversa: as empresas que operam na internet precisam tornar o ambiente digital mais seguro para crianças e adolescentes".
Do lado dos pais e responsáveis, a recomendação é manter diálogo aberto com as crianças e adolescentes sobre os riscos digitais, ajudando-os a usarem os recursos disponíveis de forma responsável e de acordo com a faixa etária. "Assim como no mundo offline, as crianças e adolescentes precisam sentir que têm um espaço seguro a que recorrer quando se depararem com algo que possa colocá-las em uma situação de insegurança ou de incômodo nas redes sociais", orienta Marina.